20070704

O que há num livro



Esta noite tive um sonho, nada mais comum e recorrente e até aí, nada de especial.
Não levo em conta a prática adormecida de sonhar, como algo que possa ser exorbitante ou além de manifestações do inconsciente. E ainda assim, não considero que possam ser esclarecedores no sentido prático, os sonhos. Previsões, espiações e acontecimentos esotéricos nem entram em questão.
Estou ciente de que como qualquer ser humano que se preze, adormece embalado pelas imagens oníricas. No meu caso, muitas no período da manhã.Das quais nem sempre posso registrar na memória consciente. Porém nada mais usual também, do que reter justamente os sonhos matutinos . Aqueles que mantêm-se nas retinas da memória entre o despertar e o seguir sonhando.
Despertei cedo, lamentando um pouco ter de abandonar o calor dos cobertores, e pôr meus pés quentinhos para fora da cama, e de súbito a lembrança que ainda abarcava a mente tranquila.
Diferentemente de outras manhãs tive um despertar deliciosamente cerebral. Antes mesmo do café preto, e do primeiro cigarro, que ajudam à embarcar na locomotiva do dia-a-dia.
Eu era criança. E os sonhos sobre a infância podem ser até assustadores. Essa temática tem sido recorrente também. Grades brancas. Arcos brancos. Um jardim de inverno bonito, a luz suave amarela, o sol aquecendo vidros, criando pingentes de cristal no espaço. Armando sombras quadriculadas contra as bordas de ferro pintadas de branco, e que apoiam os vidros no jardim. E outra vez, nenhuma novidade. Mas nem foi esse o sonho dessa noite. Nenhuma cerquinha de ferro branco enfeitou meu sonho.
Há apenas 27 minutos que me levantei da cama, e só agora meu instinto humano intelectualizado recorre ao café preto no copinho de botequim e ao primeiro cigarro do dia, para manter a escrita desperta. Não me lembro de ter sentado tão cedo à frente do computador para escrever algo.Certamente, nunca para escrever um sonho. Embora não seja de sonhos o que eu estou tentando escrever.Estamos numa viagem ao litoral. A casa de veraneio que não frequento desde a primeira espinha na testa. Nem sei se ela ainda existe. De certo meu pai já vendeu, ou pelo menos deveria.
Volto, pensando naquela casa fechada que durante todo o inverno abandonada, ficou cheia de poeira e humidade do litoral. E que eu, coisa chata, teria crises alérgicas de respiração. Mas isso não importa mais. A casa de férias está diferente. Não é mais a que eu conheci. Estamos mesmo é em outro lugar. Por minha culpa. Não lembrar mais como era. Não ser mais criança. Por não ter visitado há tanto tempo. A casa é outra.
Tudo agora muda de figura. Não importam mais as alergias, nem meu pais, e muito menos a espinha na teste. Não interessa o veraneio. Nem o inverno. Talvez se trate da primavera, mas não está colocada no sonho. Acho. Isso já é efeito do café.
Vou de encontro à um quarto onde habita sozinha uma estante, com prateleiras cheias de livros. Muitos deles. Não faço ideia à quem pertencem. Se foram lidos. Nem do que se tratam.
A viagem litorânea passa a ser um outro retorno, desta vez, à um outro lugar. Muito menos frequentado desde de muito antes. Agora o sonho traz à retina as calças curtas, a meia escorregando pelos pernas, os sapatos desamarrados, e qualquer coisa de desajuste.
Volto às grades brancas. Embora, elas ainda não estejam lá fotografadas pelo sonho.
O que há numa casa? Meus avós paternos passaram a vida juntos, desde meados de 50. Criando 6 filhos, e cerca de 10 netos numa dessas casas de jardim florido na entrada. Cercado por gradinhas brancas. Portãozinho de ferro, de arcos também brancos e 2 pilastras na frente. Nos fundos, um quintal imenso, piso de azulejo hidráulico vermelho entre cortado, que findava numa área de serviço com tudo que essas tem direito. Dois quartinhos de emprega, frente à frente, entulhados de malas, bonecas rotas, fantasias, figurinos, roupas velhas, duas camas de beliche, e um armário.Nesse quintal, ouvi tantas vezes, se ensaiaram peças de teatro, reuniões politizadas, marchas de Carnaval de sucata e panelas. E ainda no meu tempo pela casa, me lembro bem, haviam sempre gritinhos histriônicos das crianças em suas bicicletas
caloi.
A casa, ainda era composta de uma sala de estar grande e cheia de móveis aveludados. Ao lado da porta de entrada, uma cristaleira de louças decorativas ganhas nas bodas era cuidada como ouro.
A sala de jantar, com as janelas de jardim de inverno, quadradas de ferro branco.
A cozinha sempre quente do calor do forno, e a saída para a garagem e o quintal.
O quarto dos meus avós. O quarto onde dormia um tio, o único solteirão e desempregado. E um outro quarto, que havia sido primeiro de meu pai e outro tio, depois de duas tias, as únicas filhas mulheres. Duas camas e um criado mudo entre elas. Na parede direita, um armário de portas claras, cheiro de naftalina, e uma particular janelinha interior à lá
Alice in Wonderland, que dava para a sala de jantar.Na parede oposta, uma janela de grade arqueada também branca, e uma imensa ( eu era criança e aquilo parecia ter uma altura infindável) estante de prateleiras lotadas de muitos livros. Talvez de todos os ex-moradores. Talvez de minha avó ou avô. Mas nunca eu soube quem eram os leitores, de fato.
Ali a falta de dinheiro sempre fez-se problema. Motivos para mudarem-se à uma casa maior eram reclamados dia-a-dia pelos cômodos grandes porém apertados para 6 filhos e tantos outros netos. Tudo enquanto eu vivia tranquilo minhas férias escolares, fossem de Julho ou Dezembro.
Minha avó, contrariando suas 2 outras irmãs, não havia esposado um médico, ou fazendeiro rico. Escolhera para pai de seus filhos um homem simples. Dono de uma tipografia, de pouquíssima renda, e poucos estudos. Que passava a vida entre os cortes e impressões em papel, cheio de devaneios sobre a criação de textos teatrais, cenários e personagens. E foram 6 filhos criados assim. Nos ensaios do quintal. Nas apresentações como atores e tantas outras funções no teatro da cidade. As vezes permitindo-se estudar em outras capitais. Trabalhando com profissionais respeitados como
Paulo Autram e Cacilda Becker. Mas sempre tornando ao lar, onde a grama na entrada era verde, e o quintal de azulejo hidráulico vermelho. E donde bem no coração da casa eu sentia palpitar uma estante repleta de livros.Sonhei que tocava os livros, esgueirando na ponta dos pés para alcança-los, curioso, atento aos títulos, como fiz pela primeira vez em uma dessas férias em Julho. Não escolhi nenhum deles, e acho que isso não seria relevante. Não era sobre um livro específico e seu tema, que tratava o sonho. Embora ali, trocando a graça de ajudar meu avô a trabalhar na tipografia, ou ouvir histórias sobre o teatro, enfiado naquele quarto húmido e frio, invés de esconde-esconde no armário de Alice, lá onde se escutava abafadas a risada de brincadeiras no quintal, eu entrei em contato pela primeira vez com a Casa de chá do Luar de Agosto, alguns Balzacs, O caso dos dez negrinhos, Lygia Fagundes Telles, e tantos outros empoeirados.
Nenhuma outra história de pega-pega, ou de sucatas no quintal. Nem mesmo os quartinhos da área de serviço, lotados de fantasia e figurinos e onde as risadas e cantigas imperavam poderia me interessar tanto como a cama de molas onde eu apoiava a cabeça na parede para não balançar, e o reflexo branco e cristalino do sol batendo no vidro e deste na página amarela de um livro. E foi a partir destes que minhas conversas de Julho passaram a render entre eu e meus avós nos lanches da tarde.
Mudaram-se de lá na minha primeira espinha na testa. Outra casa grande, de mais conforto e um quintal ainda maior. Os quartinhos amontoados de malas e de figurinos deram lugar à uma piscina grande azulada. A risada de novos netos tomaram conta do espaço sem azulejos hidráulicos. Uma cozinha refrigerada. Quartos grandes que eu nunca cheguei a conhecer. E a mesma grama verde na entrada.E há menos de um mês de dar inicio aos meus estudos com literatura, acordei preocupado com o destino da minha única e preciosa herança de tesouros empoeirados.



contagiado pela emoção da delícia infantil sob o sol de inverno; para meus avós
T.
Julho 2007

20070702

Bonnie & Clyde

....................................................................................para Tiê




bang bang
somos tão old fashioned
e a teu lado esse passado em preto e branco nos perseguirá como criminosos, sob o trópico de capricórnio
tiê b. e sua silk stocking fatal, pethit e seu sapato lustroso
bang bang
vivemos no cinema, passeamos em casa
e numa das próximas ruas cinematográficas alguém avistará sua boina caída
de ladinho na cabeça
enquanto pela janela do carro imaginário
sacamos a pistola de plástico

bang bang
nossas palavras metralhadas soam como a poesia escondida entre as dobras de um chapéu de origâmi
vamos ser bonnie & clyde
amantes imaginários e
bandidos por natureza poética
because i love your tramp side, babe

bang bang