20050422

Just in time

Para ganhar um presente por dia: basta abrir um livro esquecido dentre todos de uma estante.
Aquela pétala seca e dura. Esvaziada de sentidos ou de nomes.
A amiga que deixou-lhe um bilhetinho sobre cores e telefones.
Uma frase grifada; que hoje pode lhe parecer menos interessante que todo o resto da página.
A citação sombria de Bataille anotada como um pensamento estupido, à caneta esferográfica, manchando uma página bonita e ilustrada.
E uma velha anotação que nunca teve destinatário; escolhida a dedo, mas sem querer dentre as páginas do capítulo "Exuberância" de um livro orácular.
Ainda bem que eu não sou superticioso...Pero que las hay, las hay!

20050416

brevíssimo ensaio sobre o melancólico

Acordou; invadido pela euforia solar que adentrava as janelas, que foram esquecidas abertas na noite anterior...
Resgatou o lençol seqüestrado pelos pés da cama. Resgatou alguma coisa, do fundo da memória. Resgatou um livro esquecido há mais de um mês no criado mudo. Que assim como o criado também não disse nada.
Distrai-se com seus pés. Com as mãos. Os dedos.
Distrai-se com o nó no peito.
Levantou.
Tirou as asas presas pelas costas.
Anotou alguma bobagem num pedaço roto de papel:
“ Levar as asas pra lavar. Deixa-las secar sob a janela. Hoje o sol está quente! ”

20050413

desafio

...que ironia; me engasgaram pelo fio do telefone!...

20050412

Os imorais

Então, quando você chega ja existe uma série de coisas que me torturam. E essas lições de cinema, não poderiam mesmo ter tomado outras vias.
Aprender silêncios controladores pra não dar as queixas por aí; um olhar sedutor e acossado caso alguém apareça para me acossar; e um levantar de sobrancelhas de uma persona comum, de um noir qualquer, que seja capaz de desviar o foco das mãos trêmulas de todas as nossas conversas.
Que ironia: ser o vulto atrás da nevoa de cigarros, enquanto o desejo é ensolarado, mesmo que pelo sol cinza, daqueles em preto & branco.
E depois de tanto assistir a imoralidade fria de Jeanne Moreau, ainda me espanto que me convidem à viver pelas frestas.

20050411

brevíssimo ensaio sobre o erótico

Despediu-se ríspidamente. Considerou ainda que já era tarde para uma visita.
Só havia aparecido para devolver-lhe o livro.
O café ou o jantar , ficariam assim: quizás, quizás, quizás.
O som do elevador chegando no hall petrifíca todo instante.
A última olhadela pelo "olho mágico" não faria mal a ninguém...tão discreto, tão voyer.
Foi-se.
Restou apenas sentar na poltrona azulada. Acender um cigarro. Em frente à escrivaninha, e a xícara de café ainda quente; fumegante.
A campaínha toca; mais uma vez a porta é aberta.
Entra. Volta-se pelo apartamento, sem cerimônia.
Num silêncio; toca com os dedos tudo por onde passa: móveis, porta-retratos, a mesa com contas e cartas, a estante de livros....um por um...Escolhe o que mais lhe estima: afetado; capa dura e vermelha.
Caminha. Deixa-o sobre a escrivaninha.
Um olhar vago. Uma expressão séria. Uma boca entre-aberta.
Um dedo mergulhado no café.
E um sussurro qualquer em francês.

20050408

La Mer

Pois se o dia amanhecer entre o rosa e o azul bebé;
vou esquecer-me da desconfiança dos meus passos ao levantar da cama;
e suspirar até o folêgo achar que não tem mais por onde;
e vou encostar o rosto na janela, assim;
só ouvidos atentos;
como se o mundo também suspirasse e se pudesse escutar um som em uníssono, de todos os suspiros do mundo;
como se suspirassem por aí uma canção bem boba do Charles Trenet;
e vou querer escrever um texto bem risonho e adocicado;
que digam que não é literatura que se preze;
mais, que digam que só há serventia no apetecer dos sentidos.

20050406

Souvenir

Nota de esclarecimento, para que não hajam dúvidas penosas, ou trapos atirados nos caminhos que estou à trilhar...!
Se eu quisesse dormir bem, e cedo eu dormiria bem cedo.
Se eu achasse que seria mais conveniente não ouvir discos envelhecidos e empoeirados numa vitrola, porque isso tudo soa melancolico, e a melancolia afasta a vivacidade do meu olhar, o rádio com cds bastante modernos está extamente ao lado da vitrola, mas mesmo assim nao costuma ser usado.
Se eu jogo baixo para seduzir as pessoas é porque me diverte que seja assim...
Se eu quisesse evitar essas discussões insólitas que eu crio por aí...e que são tão penosas quanto "E o vento levou...", eu evitaria, e pararia com essa mania de Scarlett O hara.
Se eu gostasse de fumar 5 cigarros no dia, eu fumaria os 5, mas eu gosto de acabar meu dia sabendo que não resta mais nenhum e que ainda existe um maço inteiro e novinho pra ser fumado no dia seguinte. E se eu quiser dar uma de louco, digo que estão em falta e que vou sair pra comprar!.....E não volto nunca mais.

20050403

Sobre o tédio, o anonimato , meninos branquelos e Billie Holliday

Quando abri os olhos, ela já estava me beijando no rosto.
Acho que toda mulher já deve ter desejado um dia ter aqueles lábios . E sei que com certeza todos os homens me invejariam de tê-los...que fossem mesmo só no rosto.
Ainda sentia nela um cheiro de bebida. E isso era o que me encantava todas as manhãs que ela me surpreendia com um beijo. Sempre no rosto. E do lado esquerdo. Entre a testa e as bochechas. Talvez onde se dê o nome de têmporas. Mas prefiro dizer que ela me beijava a sobrancelha.
E o quarto era só um misto de um amarelo fraco , um vinho envelhecido e o azul...
Já é a terceira vez que tento escrever um texto sobre o tédio.
O que começa a me parecer quase impossível. Principalmente depois do diálogo que travei durante toda a tarde com Sr.Miller.
Chegamos a conclusão que para se escrever sobre o tédio, é necessário desenvolver uma espécie de astúcia...Uma astúcia na qual se pode fazer parecer que nada ali é processado, nada está de fato sendo escrito, acontecendo...Uma traduçao do próprio sentimento. Embora esteja tudo lá. Ao fim.
Mas voltemos à ela...
Enquanto me dava uma das suas gardênias, me contou sobre as cicatrizes espalhadas pelo corpo. E eu quis beijá-la...Beijar uma por uma...Sentir onde é que sua péle possuia as marcas mais grossas, ou asperas...e onde não...onde uma cicatriz podia ser somente um desenho...uma forma deleitosa. Um mapa. Uma explicação do porque vinha me acordar em algumas manhãs de domingo ensolaradas...mas em que o sol se apresentava assim...sem graça e franzido...
Falou-me do problema em suas autorias...De como suas gravações eram impossíveis de serem confundidas. E como seria muito bom em certos momentos que ela se confundisse com o que ouvia dela mesma. Que quando um autor não se declara como o autor de uma coisa, pode ser tocado de outra maneira por ele mesmo. Queria achar triste ouvir que "seu homem" tinha partido, achando que era o homem de outra...E que o anônimato nos permite um outro tipo de franqueza. Isso lhe parecia as vezes... . Para assumir suas dores apenas por identificação...Como se mais alguém pudesse saber exatamente do que àquilo se tratava. Com a voz da outra...Essa outra que era tão singular e inconfundível...ela mesma.
Cantei pra ela uma de suas canções, como que na esperança de realizar seus desejos. Mas me corrigiu a letra, o tom, e nota por nota. Acabou cantando sozinha . Do jeito que achava que tinha de ser. E que não haveria de ter igual.
Rimos um pouco....ela me ofereceu um drink e me explicou sobre sua falta de interesse sexual por meninos como eu...pequenos, magrelos, e quase infantis, e com uma languidez aparente... Não se desculpava por isso. Mas dizia que meninos branquelos lhe eram pouco apetitosos. Que só me comeria num caso de virgindade, algo que até poderia excitá-la bastante...E como eu nao sou mais virgem... Mas com os negros, era diferente. O suor era diferente. Os rostos não ficavam avermelhados como se o esforço os fizesse parecer tímidos ou arfantes acanhados. Embora tenha dito, que lhe tomavam o tempo. Ja as mulheres...estas eram suas preferidas. Não importando nem cores e nem formas.
Mas que mesmo assim, sem saber muito o porque, me tinha um afeto bem guardado... E sem explicar as razões da visita e nem avisar quando seria a próxima... reclamou que não podia mais perder-se ali comigo. Irritou-se. Talvez com algo que eu tenha dito; um olhar meu qualquer...Ou só um relógio fazendo tic- tac.
E vinha chegando o anoitecer. E com isso, de forma usual partia deixando no ar e no céu um estado negro. Um negro absoluto. Irritadiço. Tão melancólico e libidinoso...Quase triunfal...
Bom...e o tédio...causador de toda essa escrita onde tudo acontece e está em movimento e nada parece de fato tedioso...bom...ele fica ainda prum outro dia...

20050401

abotoa-me

Só mais uma coisa... Antes que se esqueça. Que se deite.
Antes que fechem as janelas;
Que apaguem as luzes.
ABOTOA-ME