20050403

Sobre o tédio, o anonimato , meninos branquelos e Billie Holliday

Quando abri os olhos, ela já estava me beijando no rosto.
Acho que toda mulher já deve ter desejado um dia ter aqueles lábios . E sei que com certeza todos os homens me invejariam de tê-los...que fossem mesmo só no rosto.
Ainda sentia nela um cheiro de bebida. E isso era o que me encantava todas as manhãs que ela me surpreendia com um beijo. Sempre no rosto. E do lado esquerdo. Entre a testa e as bochechas. Talvez onde se dê o nome de têmporas. Mas prefiro dizer que ela me beijava a sobrancelha.
E o quarto era só um misto de um amarelo fraco , um vinho envelhecido e o azul...
Já é a terceira vez que tento escrever um texto sobre o tédio.
O que começa a me parecer quase impossível. Principalmente depois do diálogo que travei durante toda a tarde com Sr.Miller.
Chegamos a conclusão que para se escrever sobre o tédio, é necessário desenvolver uma espécie de astúcia...Uma astúcia na qual se pode fazer parecer que nada ali é processado, nada está de fato sendo escrito, acontecendo...Uma traduçao do próprio sentimento. Embora esteja tudo lá. Ao fim.
Mas voltemos à ela...
Enquanto me dava uma das suas gardênias, me contou sobre as cicatrizes espalhadas pelo corpo. E eu quis beijá-la...Beijar uma por uma...Sentir onde é que sua péle possuia as marcas mais grossas, ou asperas...e onde não...onde uma cicatriz podia ser somente um desenho...uma forma deleitosa. Um mapa. Uma explicação do porque vinha me acordar em algumas manhãs de domingo ensolaradas...mas em que o sol se apresentava assim...sem graça e franzido...
Falou-me do problema em suas autorias...De como suas gravações eram impossíveis de serem confundidas. E como seria muito bom em certos momentos que ela se confundisse com o que ouvia dela mesma. Que quando um autor não se declara como o autor de uma coisa, pode ser tocado de outra maneira por ele mesmo. Queria achar triste ouvir que "seu homem" tinha partido, achando que era o homem de outra...E que o anônimato nos permite um outro tipo de franqueza. Isso lhe parecia as vezes... . Para assumir suas dores apenas por identificação...Como se mais alguém pudesse saber exatamente do que àquilo se tratava. Com a voz da outra...Essa outra que era tão singular e inconfundível...ela mesma.
Cantei pra ela uma de suas canções, como que na esperança de realizar seus desejos. Mas me corrigiu a letra, o tom, e nota por nota. Acabou cantando sozinha . Do jeito que achava que tinha de ser. E que não haveria de ter igual.
Rimos um pouco....ela me ofereceu um drink e me explicou sobre sua falta de interesse sexual por meninos como eu...pequenos, magrelos, e quase infantis, e com uma languidez aparente... Não se desculpava por isso. Mas dizia que meninos branquelos lhe eram pouco apetitosos. Que só me comeria num caso de virgindade, algo que até poderia excitá-la bastante...E como eu nao sou mais virgem... Mas com os negros, era diferente. O suor era diferente. Os rostos não ficavam avermelhados como se o esforço os fizesse parecer tímidos ou arfantes acanhados. Embora tenha dito, que lhe tomavam o tempo. Ja as mulheres...estas eram suas preferidas. Não importando nem cores e nem formas.
Mas que mesmo assim, sem saber muito o porque, me tinha um afeto bem guardado... E sem explicar as razões da visita e nem avisar quando seria a próxima... reclamou que não podia mais perder-se ali comigo. Irritou-se. Talvez com algo que eu tenha dito; um olhar meu qualquer...Ou só um relógio fazendo tic- tac.
E vinha chegando o anoitecer. E com isso, de forma usual partia deixando no ar e no céu um estado negro. Um negro absoluto. Irritadiço. Tão melancólico e libidinoso...Quase triunfal...
Bom...e o tédio...causador de toda essa escrita onde tudo acontece e está em movimento e nada parece de fato tedioso...bom...ele fica ainda prum outro dia...

1 comentário:

Anónimo disse...

Amei...
Menino, vc arrasou com esse!...
...queria poder beijar suas cicatrizes e sentir sua pele branquinha junto a minha!...
deixo uma gardênia para ti....
uma, não. duas gardênias para thi...